Professor, ainda que sob pressão

Será que a luz no fim do túnel finalmente apagou?

F. C. Gonçalves

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Definitivamente não estamos em tempos de paz para quem é professor no Brasil. Se há alguns anos os problemas enfrentados pelos docentes estavam inseridos dentro do ambiente escolar (por exemplo, a falta de estrutura física e tecnológica das escolas ou o assédio moral de diretores contra um grupo específico de docentes, ou ainda a burocracia que toma 34% do tempo de aula), agora esses problemas se somam ao contexto político fora do ambiente escolar. A polarização política vivenciada pelo país nos últimos anos criou uma espécie de “lenda urbana” em que todos os eleitores de outro partido — em geral, os adeptos das ideologias caracterizadas como pertencentes a esquerda — foram devidamente doutrinados por professores inescrupulosos que querem criar uma massa de manobra para a implementação de uma ideologia comunista no país.

Afinal, os maiores problemas educacionais brasileiros estão relacionados com… o pensamento ideológico do professor. Qualquer atividade docente que possa ser utilizada como pretexto para “doutrinar” os alunos é imediatamente acusada e julgada pelo tribunal das redes sociais. Exemplos? Vários: a educação sexual nas escolas é vista como uma forma de ensinar crianças e adolescentes a fazerem sexo, promover a promiscuidade, transformar os alunos em homossexuais, como se isso fosse um critério para se definir algo realmente justificável sob o ponto de vista social, ético ou moral (e dane-se se o índice de gravidez na adolescência é gigantesco, especialmente em regiões mais carentes ou se o papel da escola é justamente o de permitir que o conhecimento liberte-nos de nossas amarras e com isso, permitir que alunos conheçam seus corpos e as mudanças decorrentes da puberdade); a discussão de temas como o comunismo, socialismo, União Soviética ou qualquer outro tema relacionado com aquilo que supostamente seria de esquerda é completamente enviesada para que se apresentem apenas fatos, sem que as opiniões e o pensamento crítico possa ser desenvolvido no ambiente escolar; por fim, teorias científicas aceitas há anos — a seleção natural de Darwin ou a teoria do Big Bang — são atacadas com um método nada científico: pressionando professores para que ensinem o criacionismo e os acusando de doutrinar os alunos para que utilizem apenas aquilo que é científico. Pois é.

Não que professores não possam perseguir seus alunos, inclusive por uma questão ideológica. Mas qualquer um com o mínimo de vivência no ambiente escolar sabe que essa posição é a exceção, e não a regra. Em geral, professores estão muito mais preocupados em dar conta de suas atividades e de sua vida pessoal do que em fazer um aluno mudar suas concepções políticas só por fanatismo. Afinal, o Brasil é o país com o maior número de alunos por docente entre os países da OCDE: em média, 38 alunos por turma. Agora imagine um professor que tenha duas aulas por semana por turma. Em média, um docente tem uma carga horária de 25 aulas por semana. Então, esse professor teria aproximadamente 12 turmas — admitindo, claro, que a carga horária média seja economicamente viável para o professor, o que dificilmente ocorre — e um total de 456 alunos para cuidar das atividades relacionadas com o ensino e a aprendizagem em sala de aula.

Não bastasse todos esses fatores, os professores brasileiros são os mais desvalorizados entre 35 países com as maiores economias do mundo.

Diante desse quadro, não é surpresa saber que 2/3 dos docentes brasileiros já precisaram se afastar de suas atividades por problemas de saúde, especialmente depressão, transtorno de ansiedade generalizada e síndrome de burnout (que afeta pelo menos 15% dos docentes brasileiros). E a perspectiva para o futuro da profissão não é a das melhores: além do desmonte promovido pelo governo Bolsonaro nas universidades públicas, com a diminuição de recursos para o ensino e para a pesquisa, a perseguição aos docentes que remonta ao Macarthismo nos anos 1950 nos Estados Unidos, em que professores acusados de serem comunistas eram submetidos a interrogatórios, vigilância e demissão sem justificativa cresce a cada dia que passa. As relações de trabalho estão cada vez mais precárias, com a “pejotização” do professor ou a terceirização de suas atividades com o objetivo de diminuir custos para mantenedores — diminuindo os salários dos docentes, mas mantendo o nível de pressão e de cobrança dos professores.

Chega a ser sufocante a sensação de vigilância, como se a simples emissão de uma opinião fosse capaz de modificar completamente os pensamentos, a visão de mundo e as concepções morais dos estudantes. Essa gente ainda acredita que o ensino se baseia numa simples transmissão de conhecimento, em uma espécie de download de informações que são acumuladas no cérebro e que podem ser acessadas com o auxílio de uma musiquinha, um trocadilho, uma piada ofensiva. Ter essa ideia estúpida de que um adolescente chega à sala de aula sem qualquer tipo de conhecimento não é apenas incorreta, como uma afronta a inteligência e aos conhecimentos de todos os envolvidos no processo de ensino e de aprendizagem.

Sou professor desde 2010. Havia acabado de concluir a graduação em Física e, bem, eu queria colocar tudo em prática e quem sabe ajudar alguém a ter um futuro melhor do que normalmente se esperaria para uma pessoa nascida e criada em uma cidadezinha do interior paulista. Embora tenha vivenciado as mais diversas situações boas e ruins em uma sala de aula, hoje vejo a atividade docente muito mais difícil do que com os problemas que destaquei no início deste texto. A patrulha ideológica e a vigilância sobre a vida pessoal de professores e de seus familiares atingiu níveis inaceitáveis. Ofensas, agressões, sucateamento da profissão: coisas que um país que realmente leve à sério a educação jamais permitiria que ocorresse, mas que no Brasil de 2019, é algo corriqueiro.

Em 2015, publiquei um texto aqui no Medium sobre as minhas razões para atuar na docência mesmo com todos os problemas que a categoria enfrentava à época (quem foi mesmo que disse que pior que estava não ficaria?). Minha principal razão era a possibilidade de fazer a diferença na vida de meus alunos; que eles saíssem de minha aula com um conhecimento maior do que quando nela entraram. É algo relacionado ao famoso texto de Taylor Mali:

Gavin Aung | Zen Pencils | Outros Quadrinhos

Eu não sei se ainda guardo em mim todo esse idealismo, o que é assustador para alguém que teve que agarrar todas as oportunidades que teve para conseguir terminar a graduação e o mestrado. Pois tudo foi em vão? Tudo foi feito de forma incorreta? Ainda sirvo para lecionar, supondo que um dia eu servi para isso?

Ainda não sei todas as respostas para essas perguntas. Eu ainda enxergo a luz que ilumina a escuridão. Mas ela está um pouco mais fraca. Talvez seja por que meus olhos que estejam mais fechados: abertos, eles veem um mundo que cultua a ignorância como virtude.

“Talvez um dia eu deixe de lecionar. Talvez um dia eu deixe de querer mostrar a beleza que existe em saber o que for possível sobre o nosso pálido ponto azul. Mas só farei isso quando a luz que enxergo lá longe, a luz que ilumina contra a escuridão da catástrofe, se apagar.”

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F. C. Gonçalves

Busco algo que me saque este mareo. Orgulhosamente criador do ccult.org.