Coisas que eu aprendi (e que jamais deveria esquecer) em minha primeira viagem internacional

F. C. Gonçalves
12 min readAug 21, 2014

“Um homem precisa viajar, por sua conta, não por meio de histórias, imagens, livros e tevês, precisa viajar, por si, com os olhos e pés, para entender o que é seu.” — Amyr Klink

Era sábado. Japão e Costa do Marfim entravam em campo para o primeiro jogo das duas seleções na Copa do Mundo FIFA 2014. Sábado, 22h. E eu estava deitado em um sofá, remoendo as dores antigas e recentes (entre elas, meu carro quase destruído por alguém que bateu enquanto estava estacionado na rua, a grave crise em meu relacionamento amoroso e familiar, as dúvidas profissionais e tudo o que cercava o meu futuro, que invariavelmente se anunciava sufocante). Estar daquela maneira, depressivo, ansioso, revoltado, estava destruindo pouco a pouco minha vontade de viver, trabalhar, me alimentar ou ter contato com qualquer outro ser humano. Isolei-me de tal forma que nem meus pais ou parentes mais próximos conseguiam me contatar com facilidade.

Era preciso tomar alguma atitude, seja ela qual fosse. Era preciso me libertar. A forma de liberdade talvez pouco importasse naquele momento, embora eu (ainda) não tivesse a coragem suficiente para dar cabo de metade delas. E num raro (e salvador) momento de epifania, anunciei a mim mesmo:

- Vou viajar.

Foi uma sentença, ou melhor, uma decisão cujo resultado esperado seria minha ressurreição e que imediatamente fez com que eu enxergasse alguma luz de esperança de sair daquela depressão. Obviamente ainda restava decidir algumas coisas importantes como: o destino, o tempo de estadia, hotéis, pontos turísticos, etc. Mas tudo isso, naquele momento – e nos dias seguintes – me pareceu algo relativamente fácil. O importante era que já tinha decidido fazer algo para me remover daquele estado letárgico-depressivo no qual me encontrava. Era como se eu tivesse caído em um poço profundo e qualquer tentativa de sair dali soasse inútil. De repente, viajar se tornou minha escada de salvação. Era preciso agarrá-la e subir cada um de seus degraus sem pensar que poderia escorregar e cair novamente.

Encontrar uma razão pela qual lutar pelos próximos dias me deu um ânimo que há muito eu não sentia. Era como se as horas, que antes eram sufocantes e solitárias, de repente se transformassem em uma contagem regressiva para uma nova e melhor visão sobre a vida.

Intervalo de jogo. Depois de muitas horas deitado refletindo e tentando enganar a quem quer que fosse sobre a minha real situação, finalmente me levantei. Fui à cozinha, preparei uns temakis e me alimentei pela primeira vez naquele sábado. O fato de não ter ninguém a quem contar minhas dores ou minha resolução de “fuga” de repente pareceu algo muito pequeno, embora eu sentisse falta disso em muitas situações de minha vida. E ali o meu primeiro aprendizado, que só entendi muito depois: a solidão nunca é a melhor companhia. Enquanto comia, aproveitava para conferir os preços de pacotes aéreos para diversos destinos. De relance lembrei de Matt Harding e de suas viagens pelo mundo e de suas danças esquisitas… Sim, viajar tinha seus riscos, mas o principal talvez fosse me perder ainda mais, me deprimir ou me resignar com a solidão e falta de companhia. Mas era preciso enfrentar os medos e as dúvidas. E segui com essa perspectiva durante o segundo tempo da partida, de modo que só voltei a prestar a atenção no televisor quando os programas pós-jogo encerravam suas transmissões. Então, em menos de duas horas, saí da escuridão completa para momentos em que feixes de luz eram claramente visíveis à frente.

Teria quinze dias livres por conta das férias escolares. Seriam esses meus dias de liberdade, de cura talvez. E quase instantaneamente, as opções convergiam para apenas um destino: o Uruguai. Vários fatores corroboravam para esta escola: fica a menos de 2000 km de casa, tenho noções básicas de fala e escrita da língua local, além de parecer (e realmente ser) um lugar seguro para caminhar, refletir, ver o por do Sol. Além disso, ir para Montevidéu me obrigaria a realizar coisas que antes tirariam meu sono: voar em um avião, ficar longe de casa o suficiente para não receber quaisquer notícias — e isso significaria que não saberia de imediato se meus pais estariam bem ou se algo teria acontecido com algum familiar — ou ser encontrado por quem quer que fosse. Mas isso traria uma consequência que mais tarde se tornou um aprendizado: ter todo o tempo só para mim e para outras coisas que quase nunca conseguia fazer, seja caminhar, ouvir música, ter meus devaneios, escrever…

O mapa do tesouro.

Os dias se sucederam, e embora eu ainda sentisse as dores que me levaram ao estado em que me encontrava naquele sábado em que decidi viajar, a escuridão parecia menos assustadora à medida que os preparativos pareciam tornar essa viagem mais real. Meu isolamento continuava, embora estivesse mais acessível a quem quisesse me encontrar: reativei meu perfil no Facebook e passei a usar o Twitter com mais frequência. Preços das passagens, hotéis, traslados e transportes dentro do Uruguai dominavam as horas em que eu passava sozinho – o que, de certa forma, ajudou e muito a entender o que esta viagem representava em minha vida. Ressurreição. Autoconhecimento. Aceitar quem eu sou. Essas eram as novas diretrizes daquele período.

“ Você pode não se livrar dos seus medos… Mas pode aprender a viver com eles.” — Stuff No One Told Me.

Quando finalmente comprei o pacote, eu tinha em mente que a viagem era “crua”, quero dizer, não teria nenhum guia ou alguém que me levasse para onde quer que eu gostaria de ir. Claro que não iria totalmente desinformado sobre o lugar, aliás, pesquisei muito sobre o Uruguai, usos e costumes, os principais pontos turísticos ou que poderiam ser de meu interesse, etc. Mas o fato de ir sem “retaguardas” teria uma consequência imediata: isso me forçaria a pedir ajuda, conversar, socializar com desconhecidos, e de certa forma, realmente vivenciar outras formas de cultura. Mas foi só depois de conviver as primeiras horas no Uruguai que entendi como isso foi essencial para que eu aprendesse outras duas lições valiosas: não sentir receio de vivenciar certas experiências (ou vergonha de sentir-se empolgado com a sua primeira viagem num avião) e um “olá” é poderosíssimo contra a solidão. Avisei minha família de minha viagem só quando já estava com os vouchers em mãos, e embora não esperasse qualquer reação de apoio ou de crítica à minha decisão, fiquei surpreso pelos desejos de boa viagem que recebi.

Com os últimos pormenores resolvidos – a instalação de mapas offline no celular e a atualização necessária na biblioteca de músicas no aparelho – finalmente era hora de partir. Enquanto me dirigia até o Aeroporto Internacional de Guarulhos, sentia que muitas coisas estavam sendo abandonadas, em especial, minha tristeza com relação às decepções que tive nos últimos tempos. Era mesmo a hora de partir.

Duas horas depois de embarcar pela primeira vez em um avião e de sentir todo o medo da decolagem, o suspense que existe durante uma turbulência, de ver algumas estrelas e as luzes das cidades (que me lembravam presépios, definição mais precisa que encontrei a 30 mil pés de altitude) e de sentir na pele a força decorrente da desaceleração no pouso, estava em meu destino. Do aeroporto até o hotel, mais trinta minutos. Estar em um território desconhecido aguçava minha curiosidade ao mesmo tempo em que o cansaço começava a me abater. Era hora de dormir.

Quase 2h da manhã do primeiro dia em solo uruguaio.

O primeiro dia em Montevidéu foi impactante, não apenas por saber que eu estava caminhando em outro país, mas também por estar com meu senso de observação plenamente ativo. Assim, uma flor, ou um transeunte, um acessório em um ônibus, uma faixa ou (uma rara) pichação de protesto, nada parecia escapar de meus olhos. Os sons da cidade pareciam ter pouca semelhança com os que até então eu havia escutado. Também era momento de testar meus conhecimentos em língua espanhola. Socializar em meu país, para mim, não era uma coisa simples, imagine então em outro país! Hora de perder o medo, amigo. Um pouco de paciência e simpatia sempre são bem recebidos e devolvidos na mesma medida e descobrir isso foi incrível! Parecia que pouco importava a aparência assustadora que meus 1,95 m de altura poderiam provocar (e acho que o “assustador” é muito mais de minha parte); seja para encontrar o ponto de ônibus mais próximo ou qual ônibus deveria pegar para chegar a algum lugar (que mais tarde descobriria que poderia facilmente chegar caminhando), seja para comer alguma coisa: invariavelmente encontrei pessoas gentis e sempre dispostas a ajudar da melhor forma possível.

Uma das primeiras imagens que registrei em Montevidéu. Coincidentemente, o “103 — Cuidadela” foi o primeiro dos muitos ônibus que usei por lá, sempre com gentil ajuda de muitos uruguaios dispostos a me orientar…

Outro aspecto que descobri é a importância da história de cada um, seja de um país, de um lugar, uma pessoa. Ao visitar o Memorial Artigas (mausoléu onde estão os restos mortais do general Jose Artigas, um dos mártires da independência uruguaia), senti como é importante preservar e compreender o passado para que possa compreender o presente e planejar o futuro. Tudo o que aconteceu em minha vida, de uma forma ou de outra, foi o resultado de escolhas ou de atitudes tomadas diante delas. Eu poderia, com razão, me classificar como responsável pelas minhas dores e sofrimentos, especialmente aquelas dores e sofrimentos que me impulsionaram a viajar até o Uruguai, mas talvez não fosse uma boa ideia fazer isso. Culpa é um sentimento inútil. Moldar o futuro era necessário para que eu não tivesse mais momentos de depressão ou não me calasse perante as coisas que me incomodavam. Foi o que de melhor descobri sobre mim naquele dia.

Memorial Artigas, em Montevidéu
A “porta” da Ciudadela.

Mas não foi a única descoberta.

Na verdade, foi um dia de descobertas e de redescobertas. Todas elas podem ser resumidas em uma imagem:

O por do Sol na Rambla é indescritível, da mesma forma que as palavras faltam quando se deseja exprimir o significado de redescobrir a beleza e a paz interior que um pôr do Sol propicia.

No segundo dia em território uruguaio, resolvi conhecer Colonia Del Sacramento, uma cidade uruguaia fundada por portugueses no século XVII. Cerca de 180 km separam Montevidéu de Colonia, que foram percorridos em mais ou menos três horas com Led Zeppelin, Janis Joplin, Wolfmother, The Strokes e The Killers na trilha sonora.

Colonia ofereceu um contato direto com a história através da arquitetura, dos monumentos, dos museus… Mais ainda: a visão do alto do farol de Colonia, a 78 m de altura. Era preciso vencer o medo de altura, o medo de cair, o medo do vento, o medo de não conseguir chegar até o alto do farol, o medo de sentir medo. E apesar de saber que as dores e os medos da alma são subjetivos, eu me culpei durante muito tempo por temer algumas coisas que sempre temi. Talvez não haja nada de errado em temer alguma coisa, desde que esse medo não paralise a sua vida. Cento e dezoito degraus depois, meu prêmio particular por ter vencido o medo de altura, degrau após degrau:

“Leve” panorâmica do farol de Colônia Del Sacramento
Vista de parte de Colonia Del Sacramento a partir do topo do farol.
Já na região central de Colonia del Sacramento, lojinhas com mensagens “felizes” nas portas.
Arquitetura em Colonia Del Sacramento

Ao retornar para o hotel, adormeci rapidamente. E tive o melhor sono em anos.

O terceiro dia foi dedicado a vasculhar um pouco mais de Montevidéu. Sentir o vento gelado a beira do rio da Prata ou caminhar tranquilamente pela Rambla enquanto ouvia Led Zeppelin ou Daft Punk: era o que mais importante tinha a fazer ali. E são indescritíveis como coisas aparentemente simples acabam ganhando uma importância ímpar na vida. Ver o tráfego dos navios, perceber a imensidão das águas do rio, sentir-se bem consigo mesmo. São coisas que não dependem diretamente do dinheiro, mas que valem muito, muito mesmo. Algo que mostra o dinamismo da vida: pouco mais um mês antes, eu estava sobre um sofá ansiando pela morte; agora, eu sentia como era bom estar vivo para viver aquele momento. Cada momento é único e estar vivo representa passar por esses momentos — inclusive momentos de dores ou de alegrias. Vida real é isso, afinal.

O porto de Montevidéu.
Eu diria que a felicidade só é completa quando é compartilhada.

E então, minha estadia no Uruguai terminava. Infelizmente.

Carrasco, o moderno aeroporto uruguaio.

De minha poltrona, vejo o reabastecimento da aeronave e o carregamento das bagagens no compartimento de cargas. O fim da tarde anunciava mais um belo pôr do Sol, o último que presenciaria em solo uruguaio naquela viagem. Era o momento adequado para passar tudo em revista. Enquanto o avião taxiava rumo à decolagem, uma espécie de epifania apareceu e, como qualquer epifania, me fez esboçar um sorriso sincero, quando enunciei a mim mesmo:

1- A vida é repleta de altos e baixos. Acostume-se a isso (e tente sorrir sempre que for possível).

2- Dinheiro facilita (e só facilita) as coisas, mas não é o objetivo final. Ver um pôr do Sol, ter contato com outras pessoas, ser o motivo do sorriso de alguém, nada disso depende do quanto de dinheiro você possui.

3- Você pode ocupar qualquer posição na sociedade, mas se não é capaz de ser um simples humano ao se aproximar de outro humano, é melhor que reveja suas posições em relação à vida.

4- Tenha de quem sentir saudades quando estiver longe (e foi uma constatação um tanto dura, já que não tinha de quem me lembrar ou pensar em contatar quando voltasse para casa).

5- Tenha alguém para contar suas experiências, seus medos, suas bobeiras, suas alegrias (eu mesmo estou fazendo isso neste momento para você que lê este texto).

6- Tente fazer uma amizade por onde passar.

7- Tente não ter pressa em viver.

8- Permita-se, de vez em quando, sentir o que você achar que deve sentir (você é humano, porra!)

9- Tente não conviver o tempo todo com seus problemas.

10- A sua vida é única e não há retorno ou segunda chance para muitas coisas. Então, se sentir vontade de comer aquele doce de leite ou fotografar um lugar que achou bonito ou dizer “eu te amo” para alguém, faça assim que puder – e não conte que um dia terá uma nova oportunidade para fazê-lo.

11- Tente aproximar as pessoas de você.

12- Seja grato com quem ajudou você a sorrir.

13- Diga a quem é de direito o que sente, seja um “obrigado” para um desconhecido, um “eu te amo” para quem você ama ou um “vai se ferrar” para quem tenta fazer você pensar que é um idiota sem utilidade.

14- Ria de seu medo de avião (mas somente depois de estar devidamente em segurança, preferencialmente em solo).

15- Seja honesto com os outros e principalmente com você mesmo.

16- Admire a beleza que existe nas pequenas coisas e essas pequenas coisas se tornarão as maiores coisas do mundo.

Ao desembarcar no Brasil, nenhum abraço ou comemoração por eu estar de volta. Ninguém estava no saguão me esperando. Eu só tinha um telefonema a dar para avisar aos meus pais que estava de volta. E só. No ônibus que me trouxe de volta para casa, eu ainda sorria com as lembranças e as boas experiências que tive no Uruguai. Era tudo o que eu precisava: boas coisas que pudessem me ajudar a sorrir quando a vida me mostrasse algo ruim.

Meu carro ainda não foi para o conserto, meu relacionamento parece querer revigorar-se, ainda tenho muitas dúvidas e medos acerca de meu futuro e me dedico a coisas que há muito não me dedicava. De alguma forma, sentir o lado ruim me fez garimpar por algo bom.

O bom mesmo é ter um objetivo a qual se dedicar, nem que seja ver o pôr do Sol na próxima tarde.

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F. C. Gonçalves

Busco algo que me saque este mareo. Orgulhosamente criador do ccult.org.